Teatrologias

10 dezembro 2007

MARILA ANNIBELLI VELLOZO
NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no-do cotidiano, Ed. DP&A, Rio de Janeiro, 2001.

No capítulo 1 intitulado O sujeito encarnado: limites, devir e incompletude, a autora
aborda a concepção da Modernidade e do corpo da modernidade mostrando como as metáforas constitutivas dos procedimentos que sustentaram essa concepção duraram no tempo. De início ela aponta 3 afirmações da perspectiva conceitual que rompem com discursos da modernidade partindo da exigência de se especificar o lugar de onde se fala:
1. ética = o falante faz-se responsável pelo seu discurso;
2. estética = reconhece a importância do conteúdo, da forma e dos vínculos específicos que cria;
3. política: pretende um lugar na rede de relações contemporâneas.
Para uma compreensão do que falamos quando falamos de corpo, enfatiza as diferenças entre a linguagem falada e a linguagem da experiência vivida, por serem de ordens distintas: cada linguagem, seja da fotografia ou da música, cria um corpo com especificidades diferentes, que se organiza e adquire modos também distintos de lidar com a realidade. A tradução para a linguagem falada será sempre parcial em relação à experiência corporal, mas não indissociável.
Quando aborda a modernidade, a autora menciona que a mentalidade moderna não foi a mesma em Galileu, Descartes, Newton, Leibniz e que tem sentido em si mesma por ter sido tecida pelo cruzamento de idéias e descobertas ao longo do tempo. O que justifica a importância de explorar a noção de corpo na modernidade porque este nos atravessa ainda hoje gerando mal-estar e crise, e nos impulsionando a busca de novos sentidos. Organiza neste capítulo os elementos a partir do Renascimento que se referem às relações corpo-mente: no âmbito da arte, o desenvolvimento da perspectiva (século XV); na história da ciência, a matematização, a medição e a análise de modelização; na filosofia, a revolução cartesiana, e os binômios como sujeito-objeto; corpo-mente. Cita a perspectiva linear e as coordenadas fixas como elementos chave do período que impeliram a uma racionalização visual e a uma experiência controlada principalmente pela fixação do ponto de vista.
Considera a idéia de perspectiva, entre o Medievalismo e a Modernidade como responsável pela mudança no modo de perceber as próprias relações de poder da sociedade, as práticas sociais, as instituições religiosas, legais e políticas. Em função deste aspecto, conforme ressalta Najmanovich, houve uma transformação não só nos valores mas também nos estilos cognitivos já que o que estava em questão neste período era o controle e domínio da natureza. Para tanto, o tempo foi contido dentro dos relógios; o espaço, capturado no enquadramento de um ponto fixo em uma pintura; e o movimento, aprisionado por leis ditas naturais, necessárias e eternas, o que gerou, segundo a autora, a ilusão do realismo.
Evidenciou-se a partir daí, ao contrário do que permitia a noção medieval de espaço qualitativo e diferenciável, a redução da experiência espacial e por conseqüência das experiências sensórias do corpo. Em função desses movimentos conceituais quanto ao espaço foi uma concepção mecânica do corpo que se instituiu. Que correspondeu ao mundo mecânico onde corpos mensuráveis se estabeleciam em uma perspectiva linear do conhecimento como uma imagem virtual do que está fora do sujeito e independente dele.
O conhecimento que passou a vigorar a partir desta concepção espacial foi o objetivismo baseado na abstração e também proveniente de outro paradigma apresentado no texto como invocado pela sistematização espacial e a medição das coisas, e do corpo: a separação radical sujeito-objeto. Que se estabelece, conforme a autora, no distanciamento e independência do sujeito daquilo que vê, entre quem observa e o que é observado. Separado da emoção, o corpo que surge deste modo de experimentar e conceber o mundo é um corpo sem vísceras, uma casca mensurável,...(p. 18). Um corpo desencarnado.
A autora cita René Descartes como o responsável pela distinção radical entre corpo e mente, de onde emerge o homem que pensa, que segundo Descartes era constituído por três diferentes substâncias: uma divina, outra pensante (a alma) e uma de partículas materiais.
No item O sujeito encarnado e a multidimensionalidade da experiência, Najmanovich aponta as geometrias euclidianas e mais tarde, a Teoria Especial da Relatividade (1905) como responsáveis pela demolição do universo das certezas. E ainda baseado em modelos matemáticos não-lineares: o Princípio da Indeterminação de Heisenberg; a Termodinâmica não Linear de Processos Irreversíveis, os Modelos de Auto-organização e a Complexidade. A dificuldade apresentada pela autora para darmos lugar a novas metáforas ocupando outros espaços cognitivos que não aquele entendido como descrever e predizer, se dá em função do modelo tridimensional da lógica clássica.
O desafio está, segundo ela, em apreender um espaço múltiplo tendo como ponto de partida a afirmação da corporalidade do sujeito que exige uma mudança de nossa paisagem cognitiva. Que envolve a idéia de co-evolução e co-dependência; de torcimento do espaço cognitivo; da presença de um buraco cognitivo; e do lugar de onde se enuncia. A autora propõe a idéia de um sujeito encarnado com um imaginário complexo e com um corpo multidimensional - vivencial fundamentado pelo conceito de enação, que abandona a suposição de um mundo anterior e independente à experiência.
No terceiro capítulo, intitulado A linguagem dos vínculos: da independência absoluta à autonomia relativa, a autora reflete sobre a crise que as alternativas da contemporaneidade nos outorgaram por romperem com os paradigmas da modernidade. Que não é uma crise de algo específico senão de nosso modo de entender e experimentar o mundo e, portanto, de se relacionar com ele. Os paradigmas emergentes surgem de diferentes áreas de conhecimento como a Lingüística, Psicologia Cognitiva, Inteligência Artificial, Teoria Literária, Crítica de Arte, Filosofia da Ciência, entre outras.
Denise Najmanovich propõe colocar em funcionamento um modelo ecológico de conhecimento explorando as redes multidimensionais e a complexidade, e retoma, no texto, o nascimento da experiência moderna para analisar a construção de um método que se pretendia capaz de eliminar o erro. Aponta novamente René Descartes (1596 – 1650) que percorreu o caminho da dúvida para ajustá-lo à certeza; o modelo divulgado por Galileu (1564 -1642) com a utilização do conhecimento matemático como ferramenta de interpretação; e a física clássica que abrange a queda dos corpos, e o movimento de rotação da terra.
Ainda, a prioridade concedida à quantificação na passagem entre Idade Média e Modernidade, que para alguns historiadores da ciência como Paul Benoit, Michel Serres e Thuillier, está ligado ao modus vivendi que se produziu pelo desenvolvimento do comércio e das atividades mercantis no ressurgimento da vida nas cidades. A mercantilização das relações, é apontada no exemplo da página 70, quando a personagem de Rei Lear, em peça do mesmo nome, do dramaturgo inglês, William Shakespeare, demonstra o amor como passível de ser mercantilizado na pergunta que dirige a suas filhas: quanto me queres. Novo espaço vivencial se estabelece transformando a sensibilidade artística tanto na perspectiva da pintura como no desenvolvimento de técnicas para padronizar obras. Músicos criam instrumentos de medição que foram importantes para o desenvolvimento da música polifônica, por exemplo.
Segundo a autora, a física newtoniana também forjou o conhecimento como absoluto, universal e eterno por meio de escalas fixas, e pela aceitação da sociedade, as noções de tempo e espaço se naturalizaram e se tornaram objetivas para todos que não conheciam sua origem. O que produziu o conhecimento objetivo como processo histórico de estandardização perceptual e cognitiva, uma visão ingênua do processo cognitivo e que talvez justifique, segundo a autora, o fato da maioria das pessoas ainda se considerarem como indivíduos isolados e não em múltiplas redes de interações. Nesta perspectiva, cita a busca pela unidade elementar e pelos componentes mais simples como aquilo que permitiu que psicólogos comportamentais pretendessem explicar o comportamento humano como uma reação linear. Normas de educação implícitas foram aplicadas para experienciar o corpo em tarefas cotidianas a partir de um único modelo, a exemplo de como se deveria sentar.
Najmanovich explicita como a contemporaneidade nos apresentou modelos de pensamento não lineares, que permitiram pensar em uma multiplicidade de espaços e que passaram a validar nossa experiencia biológica. A nova concepção prevê a auto-organização dos sistemas vivos que só se dá em relação, o que promove a complexidade e muda a referência sobre o que é conhecimento e conseqüentemente a visão dos processos cognitivos é posta em discussão. E passa a interessar o modo como percebemos e elaboramos conceitos como nos estudos propostos por George Lakoff e Mark Johnson sobre metáfora e mente corporificada, que alçaram o corpo a local do conhecimento. Como conseqüência, o campo visual se transforma e ajustes entre lentes e inversão de imagens trazem a miragem de um novo mundo não tão fácil de visualização porque afastado pela concepção modernista do campo de possibilidades sensório - motoras.
Denise Najmanovich sublinha que é tão enredado o tapete em que formulamos a partir do que vemos, que o que dizemos do que vimos, depende de nossa capacidade de nomear a coisa em si. E cada um vê de um determinado ponto de vista, que está contaminado pelas experiências prévias que vivenciou, e que interfere no como vai sentir e ver na próxima oportunidade. O que formata um corpo e um óculos para ver o mundo. No bojo das mudanças do cenário atual, as artes assumem seu lugar como produtoras de conhecimento, a ciência se permite ser poética ao olhar a natureza e o modelo heterárquico (onde o poder circula) substitui a hierarquia onde o campo das probabilidades, mais do que modelos estandardizados, são considerados.
Do sujeito cartesiano que não poderia ser subjetivo e que se encontrava fora do quadro do universo emerge um sujeito que não nega os conflitos existentes e que se constitui do intercâmbio com uma múltipla rede de interações entre diferentes sistemas, pelos vínculos que cria de afeto: O sujeito complexo, ao contrário, se sabe co-artífice do mundo em que vive, um mundo em interação, de redes fluidas em evolução, um mundo em que são possíveis tanto o determinismo como o acaso, o vidro e a fumaça, acontecimento e linearidade, surpresa e conhecimento (p. 95).